Capítulo IV - O Direito e o Dever de Curar-se
" Quem descobre
a verdade sobre si mesmo, liberta-se de todas as inverdades e ilusões.
Liberta-se do egoísmo, da ganância, da luxúria, da vontade de explorar, de
defraudar os outros. Liberta-se de toda a injustiça, de toda a desonestidade,
de todos os ódios e maledicências de todo o mundo caótico do velho ego."
Huberto Rohden
"A circularidade da
vida nos oferece certas possibilidades: de um retorno significativo, de uma
segunda chance e o que é mais essencial, a transformação de certos valores. Se
o todo de nossos anseios permitirem uma descida segura aos mundos inferiores da
nossa personalidade, poderemos, com certa prontidão, tomar de assalto alguns
demônios que vivam por lá e obrigá-los a subir para áreas mais iluminadas do ser.
É razoável imaginar que muitos deles tomarão um rumo diferente de sua natureza,
mesmo que outros ainda prestem juramento à insensatez. De qualquer jeito, as tochas
do autoconhecimento deverão permanecer acesas diante do templo das horas
e, no seu altar-mor, um cálice deverá estar cheio com o
vinho do amor próprio."
Carlos França
Este é um capítulo
especial, pois dialogaremos aqui com
dois mitos, um antigo e outro muito atual. Além disso, é uma amostra de como a
literatura, a arte de uma maneira geral, nos coloca diante de um mundo riquíssimo
que reflete nossa condição humana, nos ensinando, entretendo e curando. No
presente capítulo será abordada a
questão da orfandade a partir da análise de obras literárias que tocam nesse
tema com desenvoltura mítica.
O órfão
como maior símbolo humano da procura de si mesmo é característico de
algumas histórias. Se por um lado a arte imita a vida, por outro, a arte tem esse
poder de revelar possibilidades revigorantes e surpreendentes. Embora, somente no
fato de nos chamar atenção para certas evidências, na nossa cara muitas vezes,
que de outro modo não perceberíamos ou tardaríamos a enxergar, já notamos aí um
grande valor e uma beleza radiante.
Com relação as obras,
a primeira é um clássico da literatura mundial, Édipo Rei, de Sófocles e a outra, a obra contemporânea, Harry
Potter, de J.k. Rowling. Na narrativa de ambas, o conhecimento ou desvelamento
da personagem principal sobre si mesma é essencial para o desenrolar da trama,
o ápice e o fechamento da mesma. Com
efeito, observa-se momentos na narrativa
que convergem para esse tópico do autoconhecimento, como por exemplo, a utilização
no plano formal da obra, da dimensão profética.
Numa análise da filosofia de
Sócrates em relação a máxima, conhece-te a ti mesmo, ou seja, sobre o problema
do autoconhecimento, o filósofo afirmava que deveríamos nos ocupar menos com as
coisas (riqueza, status, poder) e mais conosco em nossa essência humana. Que o
tipo de verdade desejável é somente aquela capaz de transformar o ser do sujeito
com o poder de modificar nossa relação com tudo, começando com gente mesmo.
A própria palavra
órfão/orfandade soa como algo doloroso e terrível, pois além do seu significado ordinário traz
também a representação de um estigma social, aumentando o fardo de quem foi
dessa forma atingido, ao ser destacado ou diferenciado. Apenas em ampliar o
simbolismo de orfandade, acrescendo novo significado ao termo, tomando por base
a literatura como campo de pesquisa e estudo é algo interessante e promissor.
E a partir daí formar conteúdos e
entendimentos dentro da história ficcional que possam revelar caminhos de
superação ou ressignificação dessa adversa experiência humana. Isso poderá
trazer benefícios tanto para aqueles que vivenciaram em suas vidas de forma
direta, bem como para as pessoas que a vivenciaram de maneira simbólica. A
grande maioria por sinal. Aqui podemos incluir, no plano extrínseco da obra, a
própria autora J.K. Rowling que perdeu a
mãe aos 25 anos, e um tempo depois o pai se casou novamente.
Uma outra
contribuição do estudo, não menos importante e provavelmente mais ampla, se
impõe diante do vazio moral e da falta de valores maiores em
uma sociedade massificada pela televisão e aparelhos virtuais de maneira
predominante. A releitura e análise de clássicos literários do passado em
comparação ao surgimento de novas
histórias que toca o mítico nesse horizonte da pós-modernidade, trazendo
valores como a honra, a amizade, o altruísmo, a coragem, o amor e o
autoconhecimento é por demais relevante.
Nas obras literárias
em questão, constata-se quase de imediato a importância do autoconhecimento
para o herói, pois vem antecipado dentro da própria narrativa através de um
enigma, profecia ou prodígio. Contudo, isso não significa uma facilidade para o
herói, pelo contrário, pode ser um fator
agravante da jornada, causando um revés com consequências profundas.
De todo
modo, esses vaticínios são divisores de águas, pois trazem de maneira
contundente os grandes desafios que a personagem terá que dar conta ou superar,
já que é alguém marcado pelo "destino". Dito de outra maneira, simplesmente um
sujeito com vivência incomum ou diferenciada da grande maioria. Condição, aliás,
que o órfão pode ser incluído facilmente em termos dos padrões de nossa
sociedade.
A quebra do afeto de
uma pessoa cara da relação parental ou a descoberta de uma origem diferente da qual se acreditava, obriga o indivíduo a
entrar em contato muito cedo com a experiência mais definitiva da existência -
a morte, seja em seu sentido real ou simbólico. Privado ou diferenciado de suas
relações primárias e afetivas, e não
raras vezes, em meio à realidade dura e discriminadora, muito de seu
desenvolvimento e realização na vida dependerá de como responderá e resolverá essa ferida, essa
falta, essa marca indelével em seus
primeiros anos de vida ou até mais além.
A ferida se torna uma espécie de
questão imposta pela existência a ser respondida de alguma maneira, que não
está direcionada para um determinado caminho mais positivo ou negativo, mas
cujas resoluções podem ser construídas e alcançadas. O caso não é tão diferente
na vida real ou na ficção. Nesse ponto,
"chamemos" Sófocles em sua
magistral obra pela voz de Édipo.
ÉDIPO
"(Prosseguindo, em
tom de confidência.) Meu pai é Políbio, de Corinto; minha mãe, Mérope, uma
dória. Eu era considerado como um dos mais notáveis cidadãos de Corinto, quando
ocorreu um incidente fortuito, que me devia surpreender, realmente, mas que eu
talvez não devesse tomar tanto a sério, como fiz. Um homem, durante um festim,
bebeu em demasia, e, em estado de embriaguez, pôs-se a insultar-me, dizendo que
eu era um filho enjeitado. Possuído de justa indignação, contive-me naquele
momento, mas no dia imediato procurei meus pais e interroguei-os a respeito.
Eles irritaram-se contra o autor da ofensa, o que muito me agradou, pois o fato
me havia profundamente impressionado.
À revelia de minha mãe, e de meu pai, fui
ao templo de Delfos; mas, às perguntas que propus, Apolo nada respondeu,
limitando-se a anunciar-me uma série de desgraças, horríveis e dolorosas; que
eu estava fadado a unir-me em casamento com minha própria mãe, que apresentaria
aos homens uma prole malsinada, e que seria o assassino de meu pai, daquele a
quem devia a vida. Eu, diante de tais predições, resolvi, guiando-me apenas
pelas estrelas, exilar-me para sempre da terra coríntia, para viver num lugar
onde nunca se pudessem realizar -
pensava eu - as torpezas que os funestos oráculos haviam prenunciado."
Eis aí a desdita de
Édipo que desperta para sua trágica jornada numa festa, quando um homem revela
algo inusitado e inesperado. Com efeito, ali Édipo era alguém que nada sabia
sobre si, sobre sua verdadeira história. Da mesma forma, Harry Potter por 11
anos era ignorante de todo seu passado e de sua condição. Não muito diferente de Harry, Édipo andava sobre a face da Terra como uma espécie
de cego para si próprio, embora sua vida naquela sociedade onde fora criado era
de destaque entre os notáveis.
E nessa vida e local poderia permanecer incólume, mas como ele mesmo
confidencia, "o fato me havia profundamente impressionado", fazendo-o agir. E
que acontecimento era esse afinal? Um único e definitivo para qualquer ser
humano: a possibilidade de ter sido
rejeitado. Isto lhe abriu uma ferida emocional, que foi implantada pela
dúvida contra a subjetividade que havia
sido construída e ensinada em seu lar adotivo.
Essa dúvida faz-se
notar claramente no texto de Sófocles, apenas pela menção - de que era um filho
enjeitado -, feita por um homem embriagado, portanto um indivíduo fora de sua
razão. E nesse ponto esse tal homem se assemelhava a Édipo simbolicamente, pois
era alguém num estado de inconsciência ou pouca consciência fazendo uma
revelação para outro inconsciente de si.
E mesmo depois, não adiantou o fato de o homem ter sido desacreditado
pelos pais adotivos, que muito se
indignaram com a situação.
Não teve jeito,
aquilo fisgou Édipo irresistivelmente, a ponto de procurar o oráculo para
dirimir suas dúvidas. Por quê? A resposta mais simples seria: porque era homem
e como homem ressentiu a funesta revelação. A resposta mais complicada diríamos,
que de forma insconsciente sempre soubera de sua condição. Não sendo diferente
da realidade, onde muitos órfãos sente algo diferente em relação aos pais, sem
nunca ter sabido da adoção.
Contudo, isso
bastaria? Provavelmente não, e há um
indicativo no texto de Sófocles que demonstra isso, já nesse momento decisivo
da trama, que tem relação com o seu caráter, "À revelia de minha mãe, e do meu
pai, fui ao templo de Delfos". Assim, é o herói ao menos possuidor de um
temperamento inquieto ou impulsivo, senão despótico. Coisa que nesse momento da narrativa a
personagem não tinha a mínima consciência de que suas inconsistências e suas
idiossincrasias podiam leva-lo a uma situação de extrema desvantagem.
Édipo foi exposto
pelo próprio pai, Laio, a fim de evitar o cumprimento de outra profecia (ou da
mesma, se aceitarmos como uma continuidade ou complementaridade) de que seria
morto pelo filho.
Já no caso do órfão
Harry Potter, ele é entregue aos seus tios, logo após a morte de seus pais,
assassinados por Lord Voldemort, um
bruxo das trevas, também órfão, o mais temido bruxo de todos os tempos. Então na vigência do seu
décimo primeiro ano, Harry tem seu primeiro contato com o mundo da magia,
quando o guarda-caças de Hogwarts, Hagrid, outro órfão da narrativa, informa
que ele é um bruxo e por isso tem uma vaga garantida na Escola de Magia e
Bruxaria de Hogwarts.
Na trama escrita por J.K. Rowling, o
personagem Harry Potter vai tomando consciência de sua história de forma
paulatina. Cada livro narra um ano da vida de Harry em Hogwarts. Onde aprende a
arte e os conhecimentos do mundo dos bruxos, mas também amadurece ao
ultrapassar obstáculos sociais e emocionais de um adolescente com suas
características, entre as quais a de ser órfão. Entretanto, um momento parece
ser decisivo, quando no quinto livro da série, Harry Potter e a Ordem da Fênix,
ele toma conhecimento de uma profecia que de certa maneira moldou a vida da personagem até ali e definirá o seu
futuro também. Em semelhança ao filho de Laio, muita coisa também foi ocultada
da vida de Harry.
"- Aquele com o poder
de vencer o Lord Negro se aproxima... Nascido daqueles que por três vezes o
desafiaram, nascido ao fim do sétimo mês... E o Lorde Negro vai marcá-lo como
seu igual mas ele terá um poder desconhecido pelo Lord Negro... E um deve
morrer pelas mãos do outro porquanto nenhum poderá viver enquanto o outro
sobreviver...
(...)
- Ele escutou apenas
o início, a parte anunciando o nascimento de um menino em julho de pais que
haviam desafiado Voldemort por três vezes. Conseqüentemente, ele não pôde
avisar ao seu mestre que atacar você seria arriscar transferir poderes para
você e marcá-lo como um igual. Assim, Voldemort nunca soube que poderia haver
perigo em atacar você, que seria melhor esperar, aprender mais. Ele não sabia
que você poderia ter poder que o Lord Negro desconhece.
- Mas eu não tenho! - disse Harry com um fiapo
de voz. - Não tenho nenhum poder que ele não tenha, não poderia lutar como ele
lutou esta noite, não posso possuir pessoas ou... Matá-las...
A profecia que
estabelece o "destino" de Harry, a semelhança do oráculo de Delfos para Édipo,
vale-se da condição de ser inevitável, "E um deve morrer pelas mãos do outro
porquanto nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver..." Embora aqui não
esteja definido o resultado de maneira estrita como no caso de Édipo, já que
existe um fator moderador, o fulcro da balança que penderá para um lado ou para
o outro até a vitória final, o
conhecimento, o desenvolvimento de si mesmo.
De qualquer forma, nesse instante
da profecia, Harry compreende inteiramente, o que talvez sempre soubesse pelos
acontecimentos de sua vida, pois era um marcado, um órfão de nascença, tendo
sofrido de diversas maneiras os revezes e a dificuldade dessa condição, que
chegaria o tempo do enfrentamento daquilo que causara a ferida nele.
Um outro ponto
revelador da profecia é o fato de ser marcado como a um igual, o que é dito
textualmente "E o Lorde Negro vai marcá-lo como seu igual", ou seja, Voldemort
em termos psicológicos é o lado sombrio de Harry. Podemos até falar numa
sizígia, numa junção Harry-Voldemort. Na sua vasta obra C.G. Jung , em
repetidas referências, compreende a
sombra como tudo que o indivíduo tem de ruim, odioso, inferior, primitivo,
pouco desenvolvido e quer esconder, ou seja, o lado negativo ou obscuro da
personalidade, também é o outro numa relação especular.
Neste mesmo livro da
série a autora J.K. Rowling desenvolve a estratégia de liga-los mais
profundamente, incluindo acesso por vezes a pensamentos de um e de outro,
notadamente o fato de conhecer as mudanças de humor. No mais, Voldemort também
era órfão como Harry, sua mãe Mérope ,
morreu pouco tempo depois de dar a luz e ele foi parar num orfanato em Londres.
O pai já havia abandonado a mãe, depois dela não enfeitiça-lo mais com uma
porção do amor, ou seja, já existia ali uma condição de desamor. Assim, a
ligação dos pais era mantida pelo
exercício de um poder . Como em Édipo, os pais
de Voldemort são negativos, ao passo que com Harry sucede justamente o
contrário.
Por outro lado, o ambiente menos afetuoso parece que fora aquele
reservado para Voldemort, uma instituição para órfãos. Édipo teve mais sorte
com relação a sua adoção, e Harry, embora não tenha sido feliz em morar com os
tios, havia alguma afetividade, mesmo que enviesada daqueles seus únicos
parentes. Então, surge a questão, se Rowling ao colocar a personagem Tom
Riddle, Voldemort, sendo criado num orfanato, analisando-se pelo plano
extrínseco da obra, não seria uma compreensão cultural ou pessoal que os
orfanatos não funcionam como deveriam?
Na história de
Sófocles, Édipo não deixará de mostrar seu lado obscuro e terrível, enquanto
que na obra de J.K. Rowling, houve a externalização e concentração desse lado
obscuro na figura de Voldemort. No
entanto, o que resultará em muitos revezas para essa personagem está ligado
mesmo a questão de seu autoconhecimento, e um desses pontos é justamente a
impossibilitado de alcançar sentimentos e entendimentos do maior valor humano -
o amor.
Na verdade, todo desconhecimento de si invariavelmente leva a
dificuldades ou desastres pessoais. De qualquer jeito, além da trama fatídica e
infeliz de Édipo, quando do confronto
consigo mesmo na luz de toda verdade, e a partir dali, ainda que de maneira
trágica, houve uma transformação nele ou do ser do sujeito.
Em mais um trecho observamos, "mas ele terá
um poder desconhecido pelo Lord Negro". Aqui ambos se encontram no limite do
desconhecimento, pois nenhum dos dois faz
a menor ideia do que seja esse poder. Harry num fio de voz anuncia, "Mas
eu não tenho!". Já outro, nem mesmo sabe que isso havia sido mencionado na
profecia. Por essas premissas, pode-se
inferir isto: um dos dois, Harry ou Voldemort, aquele que resolver esse
vaticínio, assemelhando-se a Édipo quando questionado pela esfinge, poderá dar conta do enigma e viver,
mas tal coisa não basta, senão seria suficiente para o próprio Édipo, e não
foi.
Como é possível
perceber existem semelhanças e diferenças que aproximam as duas narrativas.
Além dos órfãos das duas histórias estarem envolvidos em profecias e prodígios,
uma das primeiras coisas a nos chamar a atenção é o fato que os mesmos carregam
marcas em seus corpos, sugerindo um conhecimento/acontecimento terrível do
passado dos mesmos. Isso tem força de símbolo primordialmente.
Nessas
narrativas, a marca representa uma ferida emocional, uma inconsistência a ser
resolvida. A orfandade ensina duras lições, e uma das primeiras é que as coisas
não são dadas facilmente, é necessário se lutar muito, já que se começa a vida
com uma desvantagem considerável. Em
Édipo, antes de ser abandonado, teve os pés furados pelo próprio pai,
tornando-se inchados, significado do seu próprio nome em grego, Oudipus. Em
Harry Potter, uma cicatriz em forma de raio em sua testa, o único sinal físico
da maldição de Voldemort e pelo que se tornou conhecido "O Menino que
Sobreviveu".
Não importa, as
feridas precisam ser sanadas a tal ponto que não se sinta dor, ou uma dor demasiada
ao tocá-las. Quanto as cicatrizes não é bom se exigir muito, devem ficar por lá
como marcas de nossas superações. E se nos sentirmos confortável um dia, usá-las
como exemplo, experiência e referências para outros momentos da vida, afinal
ali está a prova que lutamos e sobrevivemos.