"A verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não pode
obter nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la sempre nova do seu
próprio íntimo, caso contrário ele arruína-se. Viver sem verdade é impossível.
A verdade é talvez a própria vida." Franz Kafka
"Vejo e não posso falar com plenitude, pois não tenho uma língua poderosa que dê
conta de todas as maravilhas do universo. Apenas uma língua emprestada do pó da
terra. Esta, na maioria das vezes, frívola, indomável, volúvel, absurda e
temerária." Caravana da Alma
O respeito à verdade nos diz de um valor essencial para uma vida digna e construtiva. E um provável
remédio para alma. A forma como lidamos
com a verdade interfere diretamente no que nos somos e como agimos em sociedade ou
com a gente mesmo. Mas isso, é claro, também transita pelo caminho do ideal já que não é tão confortável bancá-la em todos os momentos. Somos chamados para uma escolha entre a verdade e a mentira praticamente o tempo todo. E aqui também entra as omissões e simulações de todos os gêneros. O que nos leva a questionar, falamos ou
promovemos a verdade em todas as situações?
Evidentemente que não! E por que não? Primeiro porque é uma forma de defesa. Freud em relação aos mecanismos de defesa, aponta que um dos primeiros e mais primitivos mecanismos do ego é o da negação, no intuito de protegê-lo de estímulos externos ou internos desfavoráveis. Segundo, porque pode nos garantir alguma vantagem, algum benefício ou poupar esforços demasiados. É fato, todos nós temos desejos e medos. O que nos leva a um comportamento nem sempre virtuoso, adequado ou maduro. Não queremos perder alguém que amamos, ou então, ferir o outro, ser deselegantes, mal-educados ou inconvenientes, e por aí vai. São exemplos de situações, que embora possam ser triviais e de pouca relevância, relativizamos nas respostas, ferindo a honestidade.
Da mesma forma, não suportamos encarar nossos próprios sentimentos inferiores e negativos, como ódio, inveja, ciúmes, ganância, vergonha e etc. E mesmo, algumas vezes, de forma inconsciente, por um mecanismo de projeção implica ato psicológico de exteriorizar conteúdos, tirar de dentro aquelas coisas que a pessoa não aceita em si própria, mas acusando o outro daquilo tudo. Outro fator é que a verdade é tão mal recebida ou recepcionada que é um luta promovê-la sozinhos. Ainda assim, devemos estar em seu encalço, sobretudo nos assuntos mais importantes e sérios. Isso nos protege de grandes estragos e nos oferece um caminho de maior paz. O preço é sempre menor no começo.
De outro lado, temos as excentricidades da "língua", para falar de uma
forma mais elegante e menos agreste. Sabemos e sentimos que ela costuma ultrapassar tudo que é
respeitável, plausível e honesto em vários momentos. E isso acontece em todos o discursos, sejam eles pessoais ou sociais. A própria sociedade forma agentes com a finalidade de maquiar ou distorcer a realidade, isso quando estes não são responsáveis por todo tipo
falácia.
Vivemos um tempo em que observamos a falta de compromisso até com o que é óbvio. As distorções produzidas triunfam de maneira escandalosa em um tempo mínimo. E não é só isso, até o cemitério onde a palavra dada foi sepultada, com a lápide, "totalmente fora de moda", hoje é uma praça pública onde tudo é anunciado com o peso da verdade descaradamente. E, não raro, os que mais enganam a coletividade são aplaudidos de pé. Por isso, as pessoas mais conscientes ou aquelas que se guiam por princípios elevados perderam há muito as esperanças de uma mudança consistente em nossa cultura. Entendem alguns que é um processo que pode levar séculos.
Disse, Rui Barbosa:
"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de
tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos
dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter
vergonha de ser honesto."
Essa preocupação com a verdade e o "diabo da língua", ou seja, as leviandades e maldades provocadas por ela, não são novas. Há dois mil
e quinhentos anos, na Grécia antiga, Sócrates, filósofo grego que
influenciou todo o Pensamento Ocidental, aborda esse tema através de um diálogo.
Ele também é uma referência de sabedoria em nossa
cultura. Em seu ensino, desenvolveu um método de investigação do conhecimento. Ele chamava a
isso de maiêutica, "parto de ideias", influência da mãe que era parteira. O
método consistia em sucessivas questões,
através de um exercício mental induzido, até que o indivíduo chegasse à verdade
última.
Sócrates tinha como princípio o conhecimento de si mesmo, utilizando a
reflexão para chegar a princípios mais definitivos. E isso deveria ser o centro
da vida moral, social e intelectual do ser humano. De todo jeito, mesmo antes da busca de qualquer verdade, o
indivíduo deveria analisar-se, reconhecendo a própria ignorância.
"Conta-se que certo dia, o grande
filósofo (ao menos é atribuído a ele este evento, embora seja certo que não tenha sido) encontrou-se com um conhecido que lhe disse:
- Sócrates, sabe o que acabo de ouvir sobre um de seus amigos?
Espera um minuto, replicou Sócrates. Antes que me digas qualquer coisa,
quero que passes por um pequeno exame. Eu chamo-o de exame do triplo filtro.
- Triplo filtro? - Perguntou o outro.
- Sim, continuou Sócrates. Antes de me contares o quer que seja sobre meu amigo, é bom pensar um pouco e filtrar. O primeiro filtro é o da Verdade. Estás
completamente seguro de que o que me vais dizer é verdade?
- Bem... Acabo de saber...
- Então, sem saber se é verdade, ainda assim queres me contar? Vamos ao
segundo filtro, que é o da Bondade.
- É algo de bom sobre meu amigo?
- Não, pelo contrário.
- Então, interrompeu Sócrates, queres me contar algo de ruim sobre ele,
que não sabes se é verdade! Ora vejamos! Ainda podes passar no teste, pois
ainda resta o terceiro filtro, que é o da Utilidade.
- O que queres me contar vai ser útil para mim?
- Acho que não muito.
- Portanto, concluiu Sócrates, se o que desejas me dizer pode não ser
verdade, não ser bom e pode não ser útil, então o porquê de contar, porque irei eu
querer saber?"
O diálogo de Sócrates revela uma maneira ou estratégia de como lidar com as fofocas, o disse-me-disse e maledicências, usando os tais filtros. O
primeiro filtro, da verdade, estabelece o lastro mais primordial, que aponta
para o que é legítimo e real.
O da bondade, tem como objetivo ajudar o outro, servindo ao princípio do amor. Ao menos, não trazer prejuízos, injúrias e difamações às
pessoas de forma gratuita e leviana. Também serve ao princípio do que é justo, assim não se voltando a parcialidade ou a unilateralidade com pré-jugalmentos .
O da utilidade, aponta para um sentido
prático daquilo que pode produzir um valor positivo em nossas vidas ou na do
outro.
Dessa forma, no simples ato de receber ou passar informações, notícias, noções, conceitos seria
importante se ater aos três filtros de Sócrates. Isso é ainda tão necessário e
moderno que chega a ser escandaloso.
E pode ir além, paradoxalmente, no mais próximo que somos
nós mesmos. Em nosso diálogo interno, fazer os filtros funcionarem para uma maior qualidade da vida psíquica e emocional, afastando "a rede intrigas" dos pensamentos e sentimentos ruins, fantasiosos ou falsos que pode
tornar nossa vida um inferno.
Carlos França